24/09/2007

Ciris Midam e os hinos da Madrinha Percília


Percília Matos da Silva, zeladora da obra do Mestre Irineu e gerente-geral dos hinários de sua Doutrina, começou a tomar Daime ainda muito criança, e se lembrava até do primeiro festejo de São João:

"Era 23 de junho de 1935, o Mestre organizou duas frentes de trabalho. Os homens foram tirar lenha para fogueira, as mulheres, preparar a ornamentação e uma grande ceia que o Mestre pediu para fazer no intervalo. Quando foi lá pelas seis horas da tarde, na Casa de dona Maria Damião, nós nos reunimos, rezamos um terço, tomamos Daime e fomos cantar até meia noite. Só tinha oito hinos! Um de Germano Guilherme, quatro do Mestre, dois de João Pereira e um de Maria Damião. Eram repetidos nessa mesma ordem por toda a noite. Quando foi meia noite ele deu um intervalo, já estava preparada a ceia numa grande mesa, quando ele mandou que nós cantássemos por três vezes aquele hino:

Papai do Céu do Coração
Que hoje neste dia
Foi quem deu o nosso pão
Graças a mamãe

Mamãe do Céu do coração
Que hoje neste dia
Foi quem deu o nosso pão
Louvado Seja Deus

Esse hino foi cantado de forma tão bonita, que nunca mais me esqueci... até hoje... chora emocionada dona Percília Matos. Foi depois disso que Irineu Serra, seguindo orientações de sua professora Clara, ordenou as datas para a realização dos hinários, formando o primeiro calendário de hinários oficiais da doutrina.

Além dessas datas de festejo oficial, era normal a realização das sessões de concentração aos sábados e das sessões de cura nas quartas-feiras. As datas evidenciavam os primeiros traços do cristianismo na Missão de Irineu Serra, segundo Jairo Carioca.

Como responsável que foi em dar forma escrita aos hinos formadores da Doutrina, ela se tornou a gerente-geral dos hinários, e assim tinha o encargo de passar a limpo os hinos recebidos, ou seja, corrigi-los. Hoje em dia pode ser difícil diferenciar os hinos "recebidos do Astral" dos hinos ditos "inventados", considerando-se talvez esses cânticos rituais mais como ferramentas humanas e menos como instruções divinas, mas até isso evidencia o quanto uma Doutrina originária do Mestre tem sofrido alterações por parte dos que declaram ser seus seguidores. Eu pessoalmente tive oportunidade de "passar a limpo" meu próprio caderno de hinário com a Madrinha Percília, e além de algumas palavras que ela modificou, recebi a explicação de que os hinos de um hinário devem guardar entre si uma relação progressiva de aprendizagem pessoal, uma ordem ascendente, e portanto hinos que repassam abordagens anteriores da própria pessoa (entendimento este muito subliminar, talvez) devem ser descartados, ou esquecidos, não-cultivados. E ela mencionou que o próprio João Pereira, cujo hinário é um dos principais do Mestre, teve trinta hinos suprimidos por este quando passados a limpo.

O hinário da Madrinha Percília se resume a quinze hinos, o que nos faz lembrar que o da Madrinha Rita são apenas vinte e cinco, o da Madrinha Peregrina são onze, e nem por isso são hinários desimportantes ou pouco fundamentais. Em termos de conteúdo, quanto aos hinários, às vezes "menos" hinos falam "mais", ou proporcionam melhor resultado prático, do que ser responsável por um conjunto de muitos hinos. Essa economia da expressão, entretanto, parece ser pouco observada na atualidade, quando sabemos há indivíduos que possuem várias centenas de hinos (às vezes até subdivididos em vários cadernos). No tempo do Mestre, e isso não quer dizer que em um "tempo atrasado" ou uma "época de vacas magras", receber um hino era não apenas uma responsabilidade espiritual mas também uma prova, e os que se diziam donos de hinos eram provados no Daime, sendo chamados pelo Mestre para puxarem e bailarem seus respectivos hinários "na força" dessa comunhão, sem cadernos de apoio, tirando apenas do âmago de sua alma a memória, a harmonia e o ritmo dos hinos, o que não dava margem à permanência de hinos "inventados" na irmandade. Quanto alguém passava pelo "vexame" de não conseguir apresentar devidamente a letra de um hino que declarara haver recebido, essa "linha da verdade" mostrava o quanto o desprendimento e a humildade são requisitos naturais do aprendizado espiritual, e atitudes de avidez, orgulho ou auto-promoção através dos hinos são pouco recomendáveis por induzirem (e em muitos casos conduzirem) ao erro ou à falsificação ideológica. O Daime é um misterioso professor que muitas vezes "dá corda para ferrar no anzol", por isso a grande preocupação dos antigos seguidores do Mestre em observar as recomendações que este deixou de viva voz. A própria Dona Percília se auto-questionava quanto aos seus hinos, como demonstra esse trecho de entrevista de Clodomir Monteiro com ela, a respeito do hino que a apresenta como Taio Ciris Midam:

Clodomir - Este hino a senhora recebeu dentro da miração?
Percília - Dentro da miração...eu estava com uma febre neste dia!...
Clodomir - E foi uma entidade que dizia para a senhora isto?
Percília - Eu ouvi, não vi, eu ouvi a música....e quando eu dei de mim eu já estava cantando.
Clodomir - Que a sra. era realmente esta entidade...
Percília - É...Taio Ciris Midam...
Clodomir - E todos no Alto Santo reconhecem que a senhora é realmente Ciris Midam...
Pedro - Pois o próprio Mestre registrou... passou a limpo o hino... seu Eu superior...
Percília - Sim, o meu Eu superior...então quer dizer que eu sou da mesma família...de Midam...né ?
C
lodomir - Tá ligado a outra metade dele...
Percília - É...é isso aí.
Clodomir - É isso aí, um é Jura, outra é Midam, o masculino e o feminino...
Percília -Foi passado a limpo com o Mestre...

A Madrinha Percília, ao ficar órfã de pai ainda menina, veio morar como filha do Mestre em sua casa. Estudou, formou-se professora e casou-se com Raimundo Gomes nos anos 40. O casamento não deu certo, e ela voltou a morar na casa do Mestre até que encontrou um novo companheiro na pessoa do Senhor Pedro. Após o falecimento do Mestre, apoiou o Padrinho Sebastião quando da criação do Cefluris, e realizou naquela igreja modificações do fardamento (gravatas azuis e sapatos brancos para a farda masculina) que antes o Mestre manifestara vontade de fazer. Três anos depois ela deixou o Cefluris, juntamente com Daniel Serra, Luiz Mendes e outros, que não aceitaram outras modificações rituais. Apesar de eventualmente participar, seja na igreja do Padrinho Tetéo, seja no Pronto-Socorro do Senhor Raimundo Lorêdo, nunca voltou a ocupar a condução dos trabalhos como antes. Foi em uma rara oportunidade que a presenciei na igreja do Senhor Luiz Mendes acompanhando um trabalho de 6 de julho onde o hinário do Mestre foi cantado sem bailado, integralmente (todos os hinos, mesmo os especiais), na mesma formação de filas em pé na velação do ataúde que foi feita em 1971. Ela declarava o que sabia e o que pensava com toda sua veemência (leia o texto completo aqui):

Ninguém pense que aprendeu. Quem quiser aprender, se dedique ao Daime. Se prepare e tome. Não vou dizer que todos possam alcançar porque "nem todos estão na graça", como diz aquele hino do Seu Sebastião Mota.

O Mestre aprendeu e doutrinou o mundo inteiro. Por isso eu digo: todos têm vontade de alcançar, mas nem todos estão na graça... É preciso se conformar com o tanto que Deus lhe deu. Aqueles que tiverem o espírito evoluído de outras encarnações estão mais próximos. Se dedique ao Daime, que lá ele está. Chame o Mestre com amor.

Espiritualmente, o Mestre é uma santidade que comanda o mundo inteiro. Ele tem todo poder. E hoje, 21 anos depois, é a mesma coisa. É como se ele estivesse aqui no nosso meio. Não que eu esteja vendo, mas, pela intuição, a gente sente.

Meu maior prazer é ver esse trabalho ficar firme, direitinho, como o Mestre quer, não como ele queria, como ele quer, pois eu não considero que o Mestre está ausente. Tudo que nós fizermos dentro desse trabalho tem que ser com ele, tem de pedir licença a ele, porque ele é o dono, ele é o comandante e o chefe geral da missão. Portanto tem que render obediência a ele. Eu não permito é cada um fazendo do seu modo. Foi uma das coisas que ele pediu. No dia 30 de junho de 1971, poucos dias antes do seu passamento, houve uma concentração em benefício dele. Quando terminou, ele disse assim:

- Hoje foi que eu recebi a minha cadeira de presidente; cheguei lá no astral, tinha um salão, a mesa posta, e a cadeira da cabeceira estava vazia, a minha mãe chegou e mandou que eu tomasse conta da cadeira.

- De hoje em diante, você é o chefe geral desta missão, disse ela. Queira ou não queira, no céu, na terra e no mar, o chefe é você.

Ora, isso depois de quantos e quantos anos de trabalho? E ele disse: - Eu estou entregando esse trabalho ao Leôncio; ele não é o chefe, fica como representante desse trabalho. Agora uma coisa eu digo, ninguém queira ser chefe, se unam e vão trabalhar. Foi nesse dia que ele aprendeu que quando se formar a mesa para abrir um trabalho, é para deixar a cadeira dele vazia, pois chamando, ele viria ensinar.

- Mas ninguém queira ser chefe, e não inventem moda dentro desse trabalho, ele falou.

Por isso eu me sinto mal quando eu chego num serviço que não está certo. Eu não me sinto bem de jeito nenhum. Se eu pudesse fazer uma circular a todos esses centros de Daime eu diria: nós não podemos mudar o ritual, nós temos de seguir os ensinos conforme eles mandam. Outro dia eu fui em um trabalho em um centro aqui perto de Rio Branco e não gostei. Já fui mesmo a paisana, porque eu não sabia como estava a organização lá, parece que eu estava adivinhando. As filas desarrumadas, sem um destacamento que fosse responsável pela organização das filas, homens com a camisa para fora da calça, com a mão no bolso, outros com o braço solto, jogando o braço para lá e para cá, e o que é pior: a extinção do maracá. O maracá é que ajuda a marcar o passo do baile. Todo mundo com caderno na mão, nunca vi isso, alguns tocando maracá para cima, sem bater na mão. E o caderno - se estivessem ao menos lendo e cantando, mas tinha muitos que só olhavam e ficavam de boca fechada. Tá fora do ritmo, não é mesmo? E o ritmo do canto, da música? Cada hora era de um jeito, ora acelerando, ora devagar demais, e o ritmo deve ser incessante, firme. Eu perguntei o por quê do pessoal não usar o maracá, me disseram: "Ah! Porque eles não têm." "Mas o maracá é uma coisa muito fácil de fazer, todo mundo pode ter." "Ah! Mas eles não aprendem." Por que não aprendem? Ora, a criança vai a aula, no começo ela não sabe, depois vai aprendendo, uma semana, duas, faz o primeiro grau, faz o segundo, vai se evoluindo, segue carreira. Então, por que não aprende? Por que não tem um instrutor, uma pessoa que instrua, que ensine como é. Agora deixar cada um chegar e fazer como quiser, não pode. Então, se ele deixou para todo mundo usar o maracá, é para usar maracá, não é? Não é caderno, ele não deixou ninguém usando caderno. Até a saída dele, não existia esse negócio de caderno na mão no hinário, de jeito nenhum, todo mundo aprendia corretamente e na hora já sabia, estudava em casa, mas na hora do trabalho, ninguém levava caderno. Como eu não faço parte da diretoria de lá, não falei nada, mas essa responsabilidade pesa nos meus ombros, pois o Mestre me disse: "Onde você for que não estiver certo, você tem que corrigir." No hinário, cada fila tem de ter o "pelotão", a pessoa responsável pela fila. Quando às vezes uma pessoa passa mal, por um momento, por causa das suas culpas, sei lá, tem que ter o fiscal para amparar, homem para homens, mulher para mulheres. O fardado só tem direito de sair por três hinos, no máximo. O ensaio é muito importante, pois é ali que a pessoa vai aprender, para quando chegar o trabalho oficial, todos estarem sabendo. Nosso trabalho é como um quartel, todos iguais. O principal na atitude do fardado é a obediência, cada um prestar o seu serviço com o máximo de obediência, cada um tem a sua posição, o seu posto de serviço, portanto, tem de assumir com muita dedicação e obediência. Tem muita coisa boa dentro desse hinário do Cruzeiro, é preciso é compreender, muitas pessoas cantam, mas a compreensão fica tão adversa... E não tem esse negócio de mistura de linha não, de atuação, nunca vi o Mestre se alterando em nada.

Compreender essas diferenças de fundamento da experiência religiosa com o Daime, de "sair para o invisível" como configurado pelo Mestre Irineu (cujo trabalho expressava mais uma base na cultura andina, ameríndia) ou de "incorporar entidades" (como nas culturas africanas), é uma tarefa árdua para os seguidores do Mestre Irineu. Eu pessoalmente compreendo que ambos sentidos da jornada (para fora e para dentro) são importantes e não excluem um ao outro, apenas deve-se observar para cada um o entorno ritual respectivo, e respeitar as especificidades dos participantes dentro do trabalho ritual construtor de uma coletividade própria.

Para obter os arquivos wma do hinário da Madrinha Percília, juntamente com seu caderno para impressão, faça o download clicando em:

12/09/2007

São Francisco bem louvado na Vila Carneiro

São Francisco
(hino 06 do Padrinho Nonato, ofertado à sua esposa a Madrinha Graça)

Estou aqui, estou aqui, estou aqui
Implorando a meu Salvador
Que me dê a santa saúde
Por vosso divino amor

Oh! Minha Mãe aqui estou em vossos pés
Implorando para me libertar
Para quando chegar o dia
Eu poder me apresentar

Me apresentar perante a meu Pai
Com firmeza e pureza em minha alma
Pedindo sempre
Vossa divina calma

Esta calma é verdade e harmonia
Que resplandece em nós todo o dia
Para compreendermos que somos filhos
Da Sempre Virgem Maria

Oh! Meu Pai, Oh! Que dor no coração
De ver tanta ingratidão
Dentro deste jardim
Que forma esta união

Mas vou seguindo é com fé e com amor
Na doutrina do meu Salvador
Que dele eu recebi
O meu prêmio de valor

Oh! Meu Pai a Vós estou agradecendo
Por tudo isto que estou entendendo
Mas sempre peço a Vós
Para eu ir compreendendo

Compreendendo as lições do professor
E seguindo com esperança no Senhor
Que Vós é quem nos livra
De todos esses terrores

Sinto dor, sinto dor, eu sinto dor
Quando lembro deste andor
Que me relembra tudo
Mas vigora o amor

Mas é preciso se humilhar e consagrar
Para poder enxergar
Essa grande batalha
Que temos que atravessar

Oh! meu Pai aqui estou arrependido
Por ter tanto lhe ofendido
Mas sempre vos imploro
Que eu não seja perdido

São Francisco ele vai se apresentar
Me dando força perante este altar
Me reconciliando e sabendo
Que somos todos iguais

Estou aqui estou vendo clarear
Sentindo fogo e meu corpo balançar
Ouvindo a voz do céu
Que me faz despertar.

Raimundo Nonato Teixeira de Souza, filho caçula do Padrinho Wilson Carneiro de Souza e da Madrinha Zilda Teixeira, nasceu em Tarauacá, município do estado do Acre, em 14 de Julho de 1949. Iniciou seus trabalhos no Santo Daime em 1962. No ano de 1990 passou à administração da Colônia Cinco Mil, cargo que ocupou por sete anos, até pouco antes da passagem de seu pai. Hoje, desenvolve seus trabalhos com o Santo Daime na Vila Carneiro, vizinho à Colônia Cinco Mil, zelando pelo Pronto Socorro de Cura Raimundo Irineu Serra e é um grande divulgador dos preceitos doutrinários deixados pelo Mestre Raimundo Irineu Serra e o Padrinho Sebastião Mota de Melo. Atualmente é vice-presidente do Pronto-Socorro dando continuidade aos trabalhos realizados por seu pai Wilson Carneiro de Souza. Contemporâneo que foi do Padrinho Alfredo Gregório desde antes da criação do Cefluris, coube ao Padrinho Nonato, em uma forte concentração nos primeiros anos da igreja da Cinco Mil, a chamá-lo "Salomão": pelos dons da inteligência e justiça que este encarnava. Apesar de haver se retirado do Cefluris por uma questão de autonomia, a "Aliança Estelar" de ambos com certeza continua a refulgir.

Publicamos já neste blog uma parte do hinário do Padrinho Nonato (veja aqui) falando dessa sua especial devoção a São Francisco, expressa também na realização dos festejos em comemoração do Santo, 4 de Outubro, cantando este hinário. Agora, numa especial cortesia do irmão Eduardo Sampaio, do Céu do Ceará, divulgamos este hinário completo, com caderno, gravado em 14 de julho deste ano na inauguração da nova sede do Pronto-Socorro Raimundo Irineu Serra, na chamada Vila Carneiro, na Estrada da Colônia Cinco Mil.


Para baixar as mp3 do Hinário "O Peregrino", obtenha o download clicando em:


São Francisco instrui o Lobo (1911, Carl Weidemeyer-Worpswede). Xilogravura. Die Blümlein des heiligen Franziskus von Assisi. A compreensão profunda e empática que São Francisco tinha do mundo natural o habilitava a comunicar-se com os animais.

02/09/2007

O Grande Estudo de Francisco Corrente

."New Jerusalem Canopy", arte de Spencer Williams

"Como é que o Mestre vivia com o povo dele? Era plantando arroz, plantando feijão, plantando macaxeira, plantando cana, plantando banana, para ter a fartura natural. Quer dizer: que essa aqui é a riqueza que o Mestre deixou na nossa mão, foi essa tradição, esse conhecimento de trabalhar uma terra e da terra tirar o pão de cada dia. (...) o Santo Daime, enquanto terapêutica alternativa, se realiza, a olhos vistos, não apenas no decorrer de suas sessões e hinários festejados, mas também no esforço do trabalho com a terra, na enxada, no terçado, no machado, na pá e no aguador, para assim se receber as energias positivas e eliminar positivamente as negativas, regidos pelo movimento do Sol, da Lua e das Estrelas, sendo essa a sabedoria regeneradora para curar os homens das cidades ao reencontrarem sua harmonia profunda com a Mãe Natureza, e assim serem mais felizes. Este é o exemplo do Céu do Mapiá."

Essas palavras de Francisco Corrente da Silva fazem parte da entrevista que realizei com ele para publicar no Suplemento Especial do jornal acreano "O Rio Branco" em comemoração ao Centenário do Mestre, na terça-feira 15 de dezembro de 1992, com o título "Herança do Mestre - Tradição Agrícola convive com Daimistas". Demonstram a essência do pensamento de Sebastião Mota com relação à busca de autosubsistência de seu povo na floresta amazônica, que nos primeiros tempos do Mapiá era desenvolvida através de trabalhos agrícolas em regime de mutirão que afirmavam a força do relacionamento comunitário. E essa com certeza é uma característica notável na pessoa do "Tio Chiquinho", o qual vinte anos atrás me recebeu na Colônia Cinco Mil, que na época dirigia, e me iniciou no Daime e na Cultura da Ayahuasca em si: até minha primeira calça de farda azul, boca-de-sino, era dele e me foi presenteada. Na mesma reportagem de 1992 eu assim me referi a ele:

"Mesmo para quem não o conhece, Francisco Corrente é uma personalidade que desperta forte empatia no primeiro contato. Verdadeiro representante da cultura amazônica da ayahuasca, na síntese encontrada entre o xamanismo indígena, as tradições esotéricas dos novos-cristãos que colonizaram o Nordeste brasileiro, e a umbanda, o tio Chiquinho, como lhe chamam seus afilhados, é, aos 44 anos de idade, um espelho da Doutrina do Santo Daime".

Ele nasceu em Sena Madureira, Estado do Acre, no dia 20 de julho de 1948, filho do piauiense Manoel Corrente e sua esposa Dona Maria. No Dia de Todos os Santos de 1971, em Rio Branco, fardou-se, e se conta que neste dia teve um "passamento" dos mais formidáveis. Aprimorou-se ajudando nos feitios de Daime de eméritos irmãos da casa como Raimundo Gomes, Francisco Grangeiro e Sebastião Mota, e juntamente com seu pai e o restante da família acompanhou a este último quando da criação da igreja da Colônia Cinco Mil. Aí casou-se com Iolanda Braga, fardada do Mestre e cunhada da filha deste, Marta Serra, e tiveram a filha Janaína. Acompanhou o Padrinho Sebastião no Rio do Ouro e no Mapiá, mas a pedido deste se encarregou da gerência da Cinco Mil enquanto o Padrinho Wilson voltava a ocupar a direção dos trabalhos espirituais da antiga igreja-matriz do Centro. Caboclo guerreiro como seu pai, o Padrinho Corrente, a partir dos anos 90 passou para a Fazenda São Sebastião, na Boca do Mapiá, coordenando vários feitios nas áreas do Rio Purus. Verdadeiro capitão-de-mato da Doutrina, seu hinário pode parecer pequeno comparado com tantos outros, com muitos hinos curtos de apenas duas estrofes que se podem repetir à vontade, mas é exatamente por essa "concentração" energética que resulta em um trabalho de muita força, muita luz, e muito estudo, seja bailado no salão, em batições de jagube nos feitios ou em sessões especiais de cura.

"O Signo do Teu Estudo", título do primeiro hino, hoje dá nome ao seu hinário. Talvez seja uma necessidade que as pessoas sentem de que os hinários tenham títulos, quando a princípio apenas alguns hinos possuiam nome específico (por exemplo, o "Unaqui", o "Leão Branco", o "Flor de Jagube" do Mestre Irineu). No caso do caderno de hinário do Padrinho Francisco Corrente, talvez o "signo" ainda não esteja develado, e o nome do caderno ainda virá para ele. O fato é que este seu hinário é mesmo um grande estudo, não apenas para ele próprio que na força do Daime recebeu seus hinos, mas para toda a irmandade ligada ao Padrinho Sebastião. Seu último hino diz:

Aqui cheguei, aqui cheguei
Aqui cheguei e vim me apresentar
Aqui cheguei, aqui cheguei
Aqui cheguei, eu vim me matricular

O Pai Eterno e a Virgem Mãe
E os professores que estão a ensinar
Que o mistério deste segredo
Está nesta escola para todos estudar.

A gravação que apresentamos é de excelente qualidade, com destaque para o rico instrumental e o timbre particular do dono do hinário. Para baixar os 34 hinos do caderno "O Signo do Teu Estudo", em formato wma, com caderno para impressão e cifras musicais, clique em:

Wilton George, dirigente do CHAVE de São Pedro, junto do nosso "Tio Chiquinho".