26/10/2011

Daniel Arcelino Serra (1939-2011)

DANIEL SERRA, UM JARDINEIRO DO MESTRE
homenagem por Eduardo Bayer Neto
 
Daniel Serra e o Mestre, em foto de Lou Gold : Daime Diverse
O conheci primeiro pelas fotos que o meu padrinho guardava do velório do Mestre, o Daniel Serra sobrinho do Mestre Irineu, ainda jovem pai de família em 1971 aos vinte e oito anos de idade. Eu residia na Colônia Cinco Mil e trabalhava na cidade, e numa dessas vindas ao centro da capital, quando descíamos de braço dado, eu e o padrinho Wilson Carneiro, a rua do Palácio das Secretarias, foi que eu o vi pessoalmente pela primeira vez, de modo inesperado: um negro muito distinto, de olhos amendoados, com um semblante que lembrava muito o Mestre Irineu. Tratou muito bem o "Seu Wilson", apesar da profunda separação entre o Alto Santo e o Cefluris, e, como fazia pouco tempo do falecimento do padrinho Sebastião Mota, seu Daniel fez questão de relembrar a última vez em que haviam estado juntos, em 1988, quando o padrinho Sebastião passava por Rio Branco retornando do Rio de Janeiro (mesma época em que gravamos o documentário "São João na Terra") e ao reve-lo veio lhe dar um forte abraço e caiu em lágrimas, demonstrando o apreço e a saudade que tinha pelo sobrinho do Mestre a cujo lado dera seus primeiros passos no bailado do salão. Foi assim então que eu o conheci de passagem naquele dia.

Tempos depois, eu em minhas atividades de pesquisa, recebi o fotógrafo Luiz Veiga para uma mostra de vídeos ecológicos em Rio Branco, e como este quisesse registrar os centros aiauasqueiros, levei-o num 6 de julho ao Alto Santo. Após a missa no túmulo, quisemos ir ao centro do Alto Santo, onde nunca antes eu estivera, e depois de passar a porteira e adentrar o terreiro, quem foi ao nosso encontro para receber-nos foi ele, o próprio Daniel Serra, então comandante da ala masculina do salão da viúva do Mestre Irineu. Sério, mas muito gentil, explicou-nos que por não haver solicitado previamente, não poderíamos fotografar nem comungar o Daime, apenas assistir a celebração. No ano seguinte, Centenário do Mestre, o reencontrei levando a mãe, Dona Cota, fardada, para visitar o grande galpão onde foi realizado aquele festival, e se dizia comovido pela celebração promovida por seu compadre Luiz Mendes ao lamentar que tal festejo não fosse realizado na sede da madrinha Peregrina. Acredito hoje que esse grande gesto diplomático seu teve iniciativa em parte a partir da leitura da reportagem que publiquei na ocasião sobre a terra natal do Mestre, São Vicente Férrer, evidenciando que coubera a um seguidor do padrinho Sebastião a proeza de em pouco tempo e com poucos recursos encontrar e registrar a casa onde Raimundo Irineu Serra nascera, cem anos antes, bem como os seus familiares que tinham mais lembranças da convivência com o Mestre quando do seu retorno ao Maranhão no final dos anos 50, memorável viagem esta da qual trouxera Daniel e dois de seus primos para viver no Acre. Para ele passei a ser um "herói" desde então, e ficamos mais amigos, o que me proporcionou oportunidade de visitá-lo amiúde para longas e tranquilas conversas instrutivas.

"Vejam como eu sou humilde... E sou bonzinho de coração... Eu falo com todos vós... E a todos eu presto atenção...", eram os versos do hinário do padrinho Sebastião que Daniel Serra jamais esquecera. Apesar de ter chegado a ser indicado por seu tio a ficar como comandante depois de sua passagem (*), o que ele declinou em razão de ser ainda muito jovem em 1971, ele foi um dos fundadores em 1975 do Centro Eclético da Fluente Luz Universal "Raimundo Irineu Serra", o Cefluris, o que demonstra que a liderança do presidente Leôncio Gomes à frente do Alto Santo era discutível dentro do próprio "estado maior" da Doutrina, e que a liderança do padrinho Sebastião Mota, era considerada natural para pessoas do círculo familiar do Mestre Irineu. A infância do Cefluris, entretanto, durou pouco naqueles anos 70: logo a ela chegaram os livre-pensadores hippies, com eles a Santa-Maria, e quando o assunto veio à baila entre os fundadores mais antigos, a decisão deles foi de retornar ao comando do presidente Leôncio Gomes. Chegou logo a adolescência e suas mutações, motivos de grandes aflições e destemperos, e depois do Rio do Ouro e a criação de novas comunidades no sudeste brasileiro, pode-se dizer que o Cefluris fundado no Mapiá é que chegou à fase adulta enfrentando suas consequencias e recebendo cada vez maiores responsabilidades. Daniel Serra, que gostava muito de lembrar de uma de suas primeiras mirações quando vira uma grande régua igualando a todos pois perante a Deus todos eram do mesmo tamanho, e que também acreditava na palavra cristã de "quem não nascer de novo, não verá o reino dos céus", não fazia acepção entre pessoas, espelhando-se no Mestre que lhe ensinara a tratar a todos por igual, e foi assim que, depois de ter deixado o seu comando no Alto Santo resolveu se dedicar a conhecer os seguidores de seu tio espalhados pelo Brasil afora e assim colaborar com a apresentação da Doutrina e sua história em conformidade com os preceitos fundamentais e fundamentadores deixados pelo Mestre Irineu, o que a partir do ano 2001 encontrou condições de realizar.

"Desde pequeno eu já ouvia falar do meu tio Irineu, porque quando era pequeno morava com sua mãe, minha tia avó Joana Serra. Ela sempre falava dele, pois esperava que um dia ele voltasse. Fazia até bolo para ele e ninguém podia comer. Cansei de ver sapatos e roupas dele lá na casa dela. Além de mim, havia outros primos morando com ela, tudo da mesma idade. Toda noite ela colocava a gente para rezar, todo mundo ajoelhado em frente a Santa. Ela rezava na frente e a gente repetia até cansar, tinha uns que dormia ali mesmo ajoelhado, aí ela mandava dormir. O mais engraçado é quando ela brigava com um de nós que não estava prestando atenção na reza, aí a gente também repetia. 'Presta atenção, menino!, aí a gente repetia 'Presta atenção, menino!'."

Em depoimentos como este de Daniel Serra, recolhido por Mivan Gedeon, vislumbramos um pouco dos aspectos da religiosidade familiar do Mestre Irineu. E foram muitos os depoimentos que ele deu sobre a história do Mestre, em toda parte onde andou, que puderam iluminar uma multidão de corações. Ele, com toda sua autoridade fez todo esse trajeto missionário como um jardineiro do Mestre, mesmo não aprovando o uso da Santa-Maria, pois reclamava do pessoal da Cinco Mil ter inventado uma "lenda rural" sobre um certo Cabo Moraes que, sendo usuário de maconha, afirmara ter um dia provido o próprio Mestre, já ancião, daquele fumo. Daniel Serra, assim como o Mestre, certamente observou o uso do "pito-de-diamba" no Maranhão quando jovenzinho, mas nunca quisera experimentá-la, e não tinha problemas em contar que o Cabo Moraes era um dos frequentadores do Alto Santo em tempo do Mestre, e que um dia ao passar por casa deste chegou a ser-lhe proposto um cigarro da planta, prontamente rejeitado. A base que dava para sua atitude era a de que foi o uso desregrado da planta é que corrompera a Doutrina em alguns centros, embaçando o processo terapêutico do Daime e conduzindo muitos seguidores a processos autodestrutivos em decorrência da irresponsabilidade por ela acentuada nos indivíduos. Sua mãe, Dona Cota, da tradição afromaranhense conhecia e utilizara a diamba como chá para perturbações menstruais, mas para Daniel Serra a planta era coisa que não lhe dizia respeito, segundo ele o Daime lhe dava tudo do que ele necessitava, seu compromisso era com o Daime e esta a sua escolha - o seu ecletismo evolutivo (**).

O importante era que Daniel Serra não fazia discriminações, e procurava aceitar a cada um de acordo com a sua própria natureza, sem deixar entretanto de apresentar seu conselho de prudência. Tinha, é claro, algumas pessoas com quem tinha ou tivera problemas de convivência, como o Tetéo, Francisco Fernando Filho, de quem contava havia se engrandecido com os dons que o Mestre lhe dera, mas nem por isso menosprezava os hinos do Tetéo ou de quem quer que seja. Ao abrir sua igreja em São Luís do Maranhão, alguns pensavam que ele, por incorporar aos trabalhos de concentração o canto dos chamados "hinos de oração do padrinho Sebastião", este deveria pedir algum tipo de autorização aos dirigentes do Mapiá e estar vinculado a eles, o que demonstrava certamente tamanho desconhecimento da Doutrina que o "padrinho Daniel" apenas fazia sorrir consigo mesmo. O Centro de Iluminação Cristã Estrela Brilhante, CICEBRIS, que Daniel junto a sua esposa Dona Otília e a família de sua filha única, Maria do Carmo, fizeram erguer na Grande São Luís, foi marco dessa autonomia e dessa independência constituída pela personalidade de um ariano forte, de muita boa vontade e dedicação à Doutrina deixada por seu tio.

Tenho muita esperança de que a irmandade maranhense conduzida pelo padrinho Daniel possa prestar agora suas homenagens ao nosso querido amigo, conservando sua obra e organizando sua casa para representar dignamente a obra de Raimundo Irineu Serra, personalidade histórica acreana, em sua terra natal, o Maranhão. Para isso, o CICEBRIS já dispõe de sessenta hectáreas de terra em São Vicente Férrer, doadas por um irmão paulista, justamente as terras que pertenceram à mãe do Mestre, onde Irineu e Daniel vivenciaram, cada um a seu tempo, a aurora de suas vidas, e onde muitos familiares do Mestre Irineu ainda vivem de modo muito humilde e autêntico e oxalá possam ainda serem apoiados por seguidores da Doutrina da Rainha da Floresta a formar sua escola, sua comunidade e sua "Casa Santa".

Lá onde chegou, agora que se aposentou do fardo material, Daniel Serra teve à sua espera muitos luminares e muitas respostas importantes da Doutrina. E lá, seguramente, Maria Serra, sua mãe, Dona Cota, está a cantar na sua cadeira de balanço o seu barquinho azul, descortinando-nos novos primores a serem alcançados. Sobre toda a humanidade!

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Para conhecer os cinco hinos que compõem o caderno de hinário de Daniel Serra, cliquem em: Lucas Serra - Soundcloud
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* Conheçam a Ata de 1971

** No século XIX, a filosofia de Victor Cousin, se autodenominou espiritualismo eclético, emprestando a esta tendência características de conciliação e moderação próprias de uma vertente do pensamento neste século. O pensamento de Cousin se autodenomina eclético porque pretende descobrir e afirmar a parcela de verdade contida em todos os sistemas filosóficos.
Cousin realiza vários estudos concernentes à história da filosofia, e termina por compreendê-la como a sucessão de quatro correntes principais: sensualismo, idealismo, ceticismo e misticismo. A cada uma destas doutrinas, é preciso reconhecer seu valor e, simultaneamente, apontar seu caráter de parcialidade. O sensualismo descobre a experiência sensível como fundamento da realidade; contudo, ela pretende reduzir todo real a esta única dimensão.
O idealismo aponta para o sujeito como fonte da realidade; ao indicar esta nova dimensão, porém, ele renega a experiência sensível, incorrendo, assim, no mesmo erro cometido pela primeira corrente analisada. Por sua vez, o ceticismo refuta as posições anteriores como dogmáticas; mas, não compreendendo a verdade parcial contida nestas posições, acaba por negá-las integralmente, incorrendo, deste modo, igualmente, em dogmatismo.
O misticismo consiste no escape aos erros precedentes, por situar-se aquém de toda análise; o que este pretende é consagrar-se como expressão da espontaneidade. Estas quatro doutrinas constituem quatro modalidades de apresentação do espírito. Contudo, este se realiza na história ao modo de retornos cíclicos. A verdade se apresenta, na história, disseminada por tais formas de pensamento, como um percurso necessário, que se repete indefinidamente.
Saibam mais sobre o ESPIRITUALISMO ECLÉTICO em http://www.coladaweb.com/filosofia/ecletismo-espiritualista